Nathan Schafer

Equipe Laranja

Nathan Schafer

Estudante de jornalismo que preenche o orçamento da família com bicos na construção civil. Aprendeu [sic] a desenhar com o avô, Mordechai Schafer, um comerciante judeu. Mordechai é especialista em piadas que ninguém entende, arte praticada pelo neto com afinco.

E-mail de Nathan Schafer

Quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O pai-de-santo no semáforo

O homem parou em frente ao semáforo, esperando que ficasse verde.

Fez da pequena mão um rodo e arrastou para fora da testa o mar de suor. Gilberto, era seu nome, olhou para a mão empapada, parecendo achar repugnante aquela mistura de sal e falso mijo. Balançou-a com força, mas o suor permaneceu. Não podia limpar na camisa ou nas calças, pois era aprendiz de pai-de-santo e vestia somente branco. Entre um despacho e uma entrevista para a rádio comunitária, resolvera dar um pulo no McDonald’s mais próximo e acabou assim: derretendo.

Derretia: junto às dobras de sua barriga peluda acumulavam-se pequenos oásis de um suor já viscoso, talvez sólido, tão misturado estava com o creme para os furúnculos. Quem buscasse as axilas encontraria algo entre a consistência de polenta recém-servida e chimia de ameixa, tudo culpa dos resquícios de desodorante roll-on. O costado dos joelhos, então, era carne-viva. Por não possuir senso estético, Gilberto vestia calças ajustadas. Procedimento bastante condenável para alguém tão gordo e com o refino de um hipopótamo bêbado, ainda mais em verão como é o verão ilhéu.

Também por não haver lido Walter Benjamin, Gilberto achava o máximo o chaveiro reproduzindo uma cena de Manet, uma mulher destas sem gosto ou graça, torcedora de nariz pra tudo, mais dois franceses destes bem abaitolados mesmo, de fazer biquinho para falar “i” e carregar baguette a tiracolo, muito pelo diagramação fálica de seu design — isso Freud explica e quem leu sabe que é certo, da mesma maneira que o sol chega antes a Hiroshima que ao Ribeirão. Para o aprendiz de pai-de-santo, aura era outra coisa e hic et nunc é a postura que a avó, recifense radicada no Campeche e falando na velocidade de coelho quando brinca de entra-e-sai, recomendou-lhe perante a vida: “se aquiete é nunca”

O sinal demorava a abrir; a loura ao lado aproveitava para distribuir likes no tinder; o sol continuava a castigar o couro de Gilberto. Os olhos ardiam, pois o suor acumulara-se de novo na testa e escorrera para os olhos, não sem antes lambuzar os cílios. Devia estar com óculos de sol, pensou, mas abandonou a lamúria ao perceber que ficava um pouco mais baixo. Atentou para o fato porque, não havia muito, se via alguns dedos mais altos que a loira do smartphone. Agora, mal alcançava o ombro da mulher. Consternado, joelhos doloridos e sangrando, axilas assadas, furúnculos espocando e cara de mártir, Gilberto notou uma poça gosmenta em que boiava seu mocassim de couro. Sustentava-o a massa disforme e contorcida de suas pernas gordas, no segundo terço das canelas.

Eu devo estar sonhando, isso não pode acontecer, como é possível que aconteça, será mesmo que acontece, hein, e essa loira porque não percebe que derreto e ninguém sai do carro para me ajudar, mas que merda, será que ninguém vai fazer nada: tudo passava pela cabeça de Gilberto. Pensou que morreria, viu várias cenas importantes de sua vida: o beijo roubado de Jurema, uma escarrada de Gorete nas fuças, o amor com as bananeiras e com a falsa beata que inaugurou bem uns quinze times do Avaí. Viu o próprio Avaí vencendo clássicos, que é só o que esse time sabe fazer, o pirão d’água com linguiça, a tainha, o abraço do Cacau Menezes; tudo, tudo, tudo passando assim pela cabeça e pelos olhos, as imagens sobrepostas.

Ao retornar de suas memórias, Gilberto não possuía mais umbigo. Quis olhar para o céu, rogar ao pai celestial um milagre, mas só o que pode ver foi a lingerie da loira, pois ela usava saias, e isso o confortou. Tentando uma última cartada, buscou o celular no bolso. Se não restavam pernas, quiçá bolsos. Utilizou-se de toda força para deslizar pela camada pastosa de ácido ribo e desoxirribonucléico e chegar ao celular, na intenção de enviar um whatsapp para Jorimar, o pai-de-santo que o instruía:

“Última”

“Mirins”

“Miramar”

“Josimar”

“Jorimar”

“Ti”

“To”

“Sete”

“Fere”

“Ferreira”

“Derretendo”

O corretor automático e o 3G daquela operadora parecida com o dizer que a gente usa quando toma champanhe impediram que a mensagem chegasse a Jorimar em tempo.

Ao morrer, Gilberto viu a glória e o futuro de seu povo, embora não restasse boca para verbalizar: ônibus com ar-condicionado e em horários regulares; carros cruzando a SC-401 com a facilidade de Ronaldinho chapelando um beque venezuelano na Copa América de 1999; a 101 duplicada; policiais abraçando os comunistas do CFH; estes mesmos policiais dando a cocaína apreendida, não mais vendendo, para animar festinhas em Jurerê Internacional; pedestres cruzando a passarela da rodoviária sem esfaqueamentos; casas baratinhas, a preço de banana.

E o principal: aquele cara chato de cabelo colorido com o mega-fone enfiado no meio do cu.

Tudo isso atesto e dou fé, por escrever baseado em relato psicografado de Gilberto.

Transcrito por Jorimar; revisado por Nathan.

Comentários

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Laranjas é um site de jornalismo de humor com notícias fictícias.
Todos os direitos reservados
Desenvolvido por Monodois