A primeira vez que acontece ele não consegue fazer muita coisa. Não consegue mover as pernas, ou os braços, ou a cabeça. A voz não sai e ele percebe que não consegue nem mesmo mover a boca. Pouca coisa acontece. Existe uma névoa ao seu redor. Aquele tipo de névoa que cerca os sonhos, à distância, marcando a fronteira entre o que se sonha e o que a mente ainda não conseguiu processar. No entanto, a névoa não fica a mais que dois metros de distância, o cercando completamente. Através da espessa cortina branca, ele consegue diferir alguns poucos prédios, construções pelas quais passava diariamente a caminho do trabalho. Um pequeno sobrado bege com trepadeiras de um forte verde se enveredando pela parede da frente, subindo até o telhado. Árvores conhecidas, não muito altas, já ficando secas pelo outono que se aproxima. E alguns rostos, ao seu redor, todos curiosos, nenhum conhecido. Ele fita um a um, procurando uma explicação, uma razão de ser e consegue pouca resposta. Até que a vê.
Uma senhora, cabelos grisalhos e rugas profundas ao redor dos olhos, revelando as marcas de seus 60 e poucos anos de sorriso constante. No meio da névoa, Dona Luzia está alegre, e de repente eles estão no metrô, e ela segura sua mão a maior parte do caminho, confiando o suficiente para deixá-lo escolher o banco em que se sentaria sozinho. Ele sabia que, de longe, ela o observava pelo vidro, mas era uma liberdade que pouco aproveitava em sua idade e era bom se sentir como um adulto. Chegando ao velho e pequeno apartamento, eles ligavam a tv e assistiam juntos a antigos seriados infantis na Manchete. Pouco antes do fim do último programa, Dona Luzia o deixava para fazer a janta. Macarrão com molho de tomate e as salsichas que ele escolhera. Aquela era a vida.
Foi a última vez que a vira, mas não a última vez que acontecera algo do tipo. Logo viriam outras, sempre um pouco diferente, sempre um pouco familiares.
[Continua]
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