César Soto

Equipe Laranja

César Soto

Enquanto assistia Whale Wars num desses canais de bichos ou História ou coisa que o valha, César Soto decidiu que era hora de levantar as mangas e tomar parte no conflito entre ambientalistas e baleeiros. Assim, arrumou as malas, juntou suas escassas economias e passou a integrar a tripulação da pequena embarcação Sea Shepherd. Em duas semanas, honrou suas raízes e sabotou o motor do barco e envenenou a comida, se juntando assim aos japoneses. Malditos homens brancos e suas interferências em tradições milenares

E-mail de César Soto

Quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A não morte de Joaquim Domingo – Parte 4

Antes de prosseguir, recomendável ler as partes anteriores:
Primeira parte
.

Segunda parte.
Terceira Parte.

Com a distância, conseguiu tirar Daniella da cabeça. Ou melhor, afastá-la, pelo menos para conseguir se dedicar a leves e casuais encontros alheios. A rotina parecia voltar aos eixos até uma conturbada tarde nublada em que, quando deu por si, ela já dizia “alô?” no outro lado da linha. Em poucos momentos, estava em sua casa, e dali em diante os dois viveram um relacionamento novo, sem qualquer interferência da antiga sombra que maculara o anterior. No entanto, talvez por causa do que acontecera antes, ele não conseguia mais se permitir baixar a guarda como na primeira vez. Ele ainda não se lembrava por que tinha ligado pra ela naquele dia, mas sabia que, qual fosse o motivo, não saíra de sua cabeça nos meses seguintes. Fosse o que fosse, martelaria sua cabeça intermitantemente, de forma que acabou por fazê-lo botar tudo a perder.

Daniella viajava quando os atritos começaram. Ele havia tentado deixar suas neuras e seus próprios problemas de fora, mas era claro que não conseguia. Começou então um elaborado sistema de auto-sabotagem, que culminou em uma pergunta que, sabia, jamais deveria ser feita. Uma pergunta que infestara sua cabeça por semanas, mas que havia sido lacrada a sete chaves.Talvez uma oitava não fosse exagero, afinal. A saudade, por fim, somada aos já mencionados problemas, fez com que suas defesas se enfraquecessem e ele finalmente a questionou sobre o motivo do primeiro término, aquele de meses atrás, mesmo sabendo que não suportaria a resposta. O que não sabia é que ela também não suportaria.

Foi assim o fim do relacionamento mais intenso da vida de Joaquim Domingo, aquele que mais lhe fez bem, e também aquele que mais lhe destruiu. De seus destroços, que foram seu lar por meses, ele ressurgiu novo, outro homem, e então nunca mais olhara para trás, nunca mais se permitira pensar nela ou naquela época. Não até entrar novamente pela porta da esquerda daquele corredor escuro, frio e impessoal.

No corredor da faculdade, ela olhava pra ele. Olhava como se apenas os dois estivessem ali. Daniella abria a boca para falar. Não era assim que tinha acontecido. Os dois se falariam pela primeira vez apenas dias depois, durante um trabalho em que acabariam escalados no mesmo grupo. Algo estava errado.

“Você está certo. Algo está muito errado, Joca, meu querido. Começas a entender. Vamos. Força que você já foi mais rápido. Lembra? Era uma das coisas que eu gostava em ti.” Ela não falava como no começo, como a garota tímida e retraída que era. Falava como no fim, com aquele desdém e uma ponta de desprezo que não se esforçava para esconder. “Conheces aquele corredor. Sabes por que está aqui. Assim como não querias admitir a situação com teu velho, não queres aceitar tua própria condição. Mas sabes. Ah!… tu sabes por que estás aqui.”

Suas mãos estavam molhadas, banhadas pelas próprias lágrimas. Não ouvia aquela voz há muito tempo, tanto que nem parecia a mesma existência. Juntando todas as forças que lhe restavam, respondeu apenas com um engasgado “Desculpa”.

“Não desculpo. Sabes que jamais conseguirei te perdoar. Já falamos disso mais vezes que jamais pensei que fosse suportar. Mas não é a mim que deves desculpas, Joca. Vai, pare de manha.”

“Não sei do que tás falando, pequena. Juro que não sei. Não entendo mais nada do que acontece. Primeiro você. Depois meu pai. Não faço idéia…”

“Ora, então o grande Joaquim Domingo, o dono da razão e da verdade, não sabe o que acontece dentro do próprio inconsciente? Lembra-te daquela tarde, Joaquim. Daquele telefonema.”

“Te liguei porque sentia tua falta, pequena. Sinto tua falta até hoje. Talvez por isso esteja aqui, para acertar os erros cometidos entre nós.”

“Ahaha! Muito nobre de sua parte resolver reparar nossos problemas 20 anos depois, Joca! Você sabe que não é verdade. Não falo do teu telefonema para mim, mas daquele do teu pai, para ti, minutos antes de lembrares que eu existia.”

Foi então que entendeu. Naquele dia, o celular já estava em sua mão. O aparelho estava umedecido pelo suor do contato que durara quase uma hora, durante a ligação em que seu pai quebrara os anos de silêncio para anunciar que estava doente, muito doente. Suas células atacavam o próprio sistema. Câncer, a última palavra que se espera ouvir. Ao desligar, Joaquim ficara ali, sentado em sua cama sem saber o que fazer, até perceber que batiam em sua porta. Daniella viera ligeiro, respondendo à sua ligação. Ele jamais mencionara qualquer coisa. Queria que estivessem juntos por seus sentimentos, não por pena. Durante todo o tempo, o câncer nunca fora citado. Nem enquanto implorava para que ela voltasse. Nem enquanto pedia perdão. Seu orgulho era tamanho que não podia permitir tal coisa. Acima de tudo, jamais poderia admitir a si mesmo que o homem responsável pela sua formação, aquele herói que tanto admirara, tinha os dias contados.

“Agora vês. Você percorreu aquele mesmo corredor antes, Joca. Na tarde em que acompanhou teu pai aos exames. A primeira vez que o via em anos, e uma das últimas do resto de suas vidas. Não pense, no entanto, que aquele breve e perturbado vislumbre seria suficiente para decorar de tal forma todos os seus detalhes. Você o viu novamente há poucos dias. Desta vez, sob a perspectiva horizontal de uma maca.”

Agora, com 45 anos, via finalmente seus erros. Gostaria de voltar atrás, mas entendia tardiamente que era tarde demais. Não apenas pela sua mulher, não apenas pelos seus filhos. Não poderia voltar atrás não porque eles jamais se perdoariam, mas porque entendia que nunca teria outra oportunidade. Ela não estava ali. Aquela Daniella, amálgama do começo e do fim, era um fruto de sua própria mente, de sua própria culpa. Percebia que não percorrera aqueles corredores apenas uma vez, quando acompanhava seu pai. “Eu estava em uma cama, não é mesmo? Estou doente, não é isso?. Câncer. Genética é uma merda. Carma… carma é pior ainda.”

As gotas que até então ele julgara serem lágrimas se intensificaram e então eles estavam no lado de fora da entrada do curso, no mesmo momento do primeiro beijo. Ela não era mais aquela e ele obviamente tampouco. Não eram lágrimas, mas sim a chuva que havia transformado aquele episódio em algo digno de cinema, que aumentava a cada palavra. Logo, a força do vento deixava claro que não se tratava da mera garoa de então, mas uma verdadeira tempestade, forçando Daniella a gritar suas últimas palavras.

“Quase isso, meu querido. Teus genes lhe pouparam. Tua doença é grave, mas é outra. Estou aqui para que digas a si mesmo o que evitou todo esse tempo. Não tens câncer!…” A velocidade e a quantidade da água eram tamanhas que em pouco tempo os dois, que lutavam para se manter em pé, perderam o controle e foram arrastados pela enxurrada. À distância, veio então a sentença. “…Você, meu amado Joaquim Domingo, está em coma…” Não houve tempo para ouvir mais nada. Essa fora a última vez que a vira. A água os levava para cada vez mais longe.

Comentários

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Laranjas é um site de jornalismo de humor com notícias fictícias.
Todos os direitos reservados
Desenvolvido por Monodois