Nathan Schafer

Equipe Laranja

Nathan Schafer

Estudante de jornalismo que preenche o orçamento da família com bicos na construção civil. Aprendeu [sic] a desenhar com o avô, Mordechai Schafer, um comerciante judeu. Mordechai é especialista em piadas que ninguém entende, arte praticada pelo neto com afinco.

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Quinta-feira, 12 de julho de 2012

Esperando Godô

Na noite em que o mataram, Vítor de Jesus, o Pai Vitinho, pulou da cama, sobressaltado, às duas horas da manhã. O velho pai de santo acordava de um pesadelo com formigas. Restavam a ele não mais que duas horas de vida. Era a terceira vez em um mês que o mesmo se sucedia; Pai Vitinho se via escorado no espaldar de uma cadeira muito rústica e não conseguia mover um pedaço sequer de seu corpanzil enquanto saúvas enormes corriam em sua direção, subiam-lhe nas pernas e descolavam tiras de seu lombo. A dor era imensa, excruciante, e mesmo assim sua voz quase gutural não saía de jeito e maneira. Abria a bocarra de dentes amarelos e o grito se perdia em algum lugar. Sua amásia, a cearense Maria do Socorro — ainda nua — reclamou:

— Mais um pulo desses e quem fica ruim do coração sou eu, painho!

Pai Vitinho não fez menção de responder a menina. Abriu a janela do quarto e só pode enxergar pelo vidro a chuvinha fina que caía no pequeno quintal barrento. Pediu que Maria do Socorro saísse da cama, que lhe fizesse um café e que trouxesse uma cueca e que aumentasse a velocidade do ventilador. Faço tudo isso que o senhor mandou, ela disse, mas o ventilador já está no máximo, painho! Maria do Socorro se dirigia a ele sempre assim, da posição inferior em que estava. Mesmo em meio aos árduos momentos na cama estreita de madeira era “vá, painho”; “não pare, painho”; e de vez em quando “o senhor quer que eu vá por cima, quer?” Aos sessenta e um anos, Pai Vitinho mantinha-se na ativa, “pelo tempo que preciso for”, conforme se gabava na pinguinha diária que lhe dava o velho Charuto, dono do armazém, em troca de proteção espiritual. “É de fazer inveja a muito rapaz por aí”, costumava atestar Maria do Socorro ao velho enquanto preparava um bom revirado de feijão para que dormisse satisfeito. Sua receita para a felicidade era a seguinte: sexo, depois o revirado, e então uma noite de sono tranquilo.

O café veio quente e forte, como era de seu gosto. Enquanto bebericava na caneca esmaltada, pensava no sonho. Tentava buscar significado nas saúvas aos montes, nas costas da cadeira tosca, no sonho sempre o mesmo. Decidiu que não havia significado. Por vias das dúvidas resolveu perguntar a Maria do Socorro.

— Não acho nada — ela respondeu. — Deve de ser essa mania de comer revirado antes de deitar, painho. Resulta pesadelo…

Pai Vitinho ficou em silêncio, sentado na cama. Podia ser e podia não ser. Suspenderia os revirados por uma semana e veria se existia verdade na relação. Ao pensar no revirado e embora gostasse é de cachaça, teve desejos de cerveja.

— Ainda temos aquele dinheirinho? — perguntou.

— Temos. Tudinho, tudinho…

— Pois amanhã vou comprar umas cervejas…

— Não fosse o trabalho pra matar o irmão daquele cabeça chata a gente mal comia, não é, painho? – perguntou Maria do Socorro, já sabendo a resposta.

— É verdade. Veio em boa hora, o cabeça chata…  — Pai Vitinho pôs-se a rir. — Lembra? Eu dizendo: pra esse caboco aqui vamos ter que fazer um obulô de maracundê e um siringá de zagu, que o corpo dele tá quase fechado! Vamos precisar de fotografias e de uma meia de seu irmão. E tu ainda me contesta: acho que pra esse aí é preciso mesmo um olundim de mutá, painho! — o velho ria que não se aguentava — Quase mijo nas calças, ali mesmo. Que presença de espírito! Que presença de espírito… Aliás, como era mesmo o nome do cidadão?

— Godoval. Mas disse que a gente podia chamar de Godô…

— Não, Godô era o irmão pra morrer. Quero saber é o nome do cabra que encomendou o serviço…

— Verdade, painho. Mil perdões! O nome do caboco é Hermival.

— Pois então! Grande Hermival! Viva Hermival!

Pai Vitinho fez um brinde ao cliente e esvaziou a xícara de café em dois longos goles. Eram três horas. Imune à cafeína, achou por bem arriscar-se no sono outra vez. Satisfeito, cobriu as pernas com o lençol florido e logo adormeceu em sonhos tranquilos. Acordou com o barulho de passos em redor da casa e uma voz que lhe chamava. “Pai Vitinho? Pai Vitinho? Preciso de ajuda!”, ela dizia. Vestiu uma regata vermelha e saiu ainda de cuecas, tranquilo, em direção à porta. “Quem é?”, perguntou. Não teve resposta, mas a curiosidade foi maior que a prudência, que era quase nada também: destravou os dois trincos e empurrou a porta sem maçaneta para receber dois balaços à queima-roupa; o primeiro no peito e o outro na altura do estômago. A centena de grãos de chumbo perfurou a roupa de Pai Vitinho e o sangue do velho fundiu-se, em bonito degradê, com a regata já vermelha.

Antes da morte, o pai de santo ainda pode vislumbrar o rosto do assassino. “Você?”, perguntou, reconhecendo. O assassino respondeu que sim, eu mesmo. Meu irmão Hermival, aquele pirobão, também teve o mesmo fim do senhor. O corpo ainda é quente… Mas diga aí, Pai Vitinho, que mundo é esse, seu senhor Pai Vitinho? Que mundo é esse em que um corno pede a outro corno que lhe vingue as guampas e que esse mesmo corno recebe dinheiro pra enganar o primeiro corno, que além de corno é frouxo? Se não falasse tanto na companhia de Charuto, morria só Hermival e o senhor, com todo o respeito, continuava a se lambuzar com sua protegida… Mas não, é bonito falar mais que nem sei o quê! Pois bem, o que a língua dá, a língua tira. E já que fiz o que me tinha disposto, não tenho mais que perder tempo com um pedaço de merda como o senhor. Passar bem…

Godô contornou o casebre apressado e tomou o rumo de casa, pela mata. Ao pular a mureta do quintal ainda pode ouvir os últimos engasgos de Vítor de Jesus, o Pai Vitinho, e o que lhe pareceu o marchar surdo de formigas-lava-pés, em procissão ao sangue adocicado do velho diabético.

 

Texto inspirado pela notícia Suspeito por assassinato de pai de santo é preso em Jacobina publicada no Correio Bahiano em 28/05/2012. A transcrição:

Um homem apontado como autor do assassinato do pai de santo Vitor de Jesus, o “Vitinho Pai de Santo”, de 61 anos, foi preso em casa, no povoado Paraíso, em Jacobina, a 330 km de Salvador.

Na casa de Godoval Andrade de Oliveira, o “Godô”, 38, os investigadores da 16ª Coordenadoria Regional de Polícia (Coorpin) apreenderam uma espingarda de fabricação artesanal. Ele já esteve preso por estupro no Presídio de Salvador.

Vitor foi morto dentro de casa, com quatro tiros, em outubro do ano passado. O delegado Cleriston Jambeiro, titular da Delegacia Territorial de Jacobina, informou nesta segunda-feira (28) que “Godô” teve a prisão decretada pela Justiça, mas nega participação no crime.

Godoval também foi autuado em flagrante por posse ilegal de arma e ficará custodiado na carceragem do Complexo Policial de Jacobina. A polícia busca agora capturar outros envolvidos no homicídio.

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