Em manhãs de sol o juiz Tertuliano senta-se na poltrona de palha trançada, empoleirado na sacada da casa de três andares, e prepara vagaroso o cachimbo de espigas, socando um bom fumo boliviano com dedos grossos. Tragando devagar e soltando a fumaça em pequenos estalos labiais, como lhe ensinaram, o velho desfruta a bonita vista do Madeira, sombreado pelas enormes folhas do Cabuçu. É dezembro. Tendo a estação chuvosa apenas principiado, não há sinal da formação dos espelhos d’água de que Tertuliano tanto gosta. Mas, há jaca em abundância. Imensas, elas pesam nos robustos troncos da jaqueira e espalham uma espécie de baba em redor da árvore quando despencadas. Agora mesmo, aqueles dois caboclos ali dividem uma, limpando o grude na traseira dos calções sujos. E olhe lá, se não é a bicicleta vermelha do peixeiro Waldemar apontando na esquina.
“Bom dia, dotô”, grita o peixeiro, equilibrando-se na bicicleta pra tirar o boné encardido, “Bora lá no mercado mais tarde!”
“Hoje não, Waldemar”, responde, sem sair da poltrona.
Findado o pito um sonolento Tertuliano livra-se das sandálias encardidas, as tiras presas na sola por um alfinete. Nem cinco minutos de modorra e já o juiz está dormindo. Dorme na poltrona, de pernas esticadas, o chapéu panamá cobrindo as pestanas e o nariz, deixando à vista apenas um basto bigode grisalho. Nas sonecas, os óculos de Tertuliano, presos a um cordão de ouro, sempre lhe descem aos lados, tendo o paquidérmico juiz esmagado mais de três no último semestre. Mas veja bem, há sempre algum disposto a estragar o sossego do cristão e, desta vez, foi pomba de mira certeira, soltando potente jato de bosta na camisa de Tertuliano. A descarga foi de maneira tão forte, que até os bigodes do juiz saíram salpicados. De primeiro impulso, e nem por isso o mais sábio, um recém-desperto Tertuliano lambe os próprios bigodes. Sem nada entender, mas estranhando o gosto, vai de encontro à merda ao apalpar o tórax com a mão direita e, em outro reflexo não muito cerebral, limpa a gosma nas calças brancas, desejando às aves “que expurguem e se estrepem e se arrombem, com um candiru saindo do rabo”. As imprecações do marido atraem Ursolina. A jovem esposa do juiz vencera com rapidez os dois lances de escada que separam cozinha e varanda, estacando meio curvada, escorada no batente da porta com uma colher de pau na mão.
“Que passou, homem?”, pergunta, ainda ofegando, “É o coração de novo?”
“Merda”, berra Tertuliano, “Não consegues ver que estou coberto de merda, pustema dos infernos?”
“Vixe, homem! Já tá assim? Tu nem é tão velho pra se borrar…”
“Não brinque comigo, filha duma quenga”, grita Tertuliano quase uma oitava acima ao levantar-se da poltrona, o colarinho parecendo mais e mais justo, a cara avermelhando-se; procedimento nada bom para um cardíaco.
Por não se fazer entender, o gordo e agora nervoso Tertuliano sofre enfarte fulminante e, no caminhar cego e deselegante dos moribundos, derruba da pequena mesa de ferro garrafa ainda lacrada da boa pinga cearense, espalhando canha pelo chão de mármore. Ainda bambeando e com a vista muito embaçada, se esforça, tenciona recobrar o equilíbrio; estende os braços procurando Ursolina, aquela desgraçada, aquela peste, ô atraso de vida! Não a encontra. Encontra sim um pássaro, ou qualquer outro bicho voador — difícil distinguir com a vista pesteada — num rasante, a lhe roubar de vez a pouca sustentação. Desembestado, o juiz entra na casa porcamente mobiliada e se dirige para a última janela lateral, de onde mergulha em defenestração involuntária. Três andares abaixo, o crânio amassado de Tertuliano forma um espelho de sangue na calçada e os miolos aveludados do juiz, homem ilustrado e ilustre, são velados por varejeiras sentimentais até a chegada da polícia.
Passada a missa de sétimo dia, Ursolina organiza o inventário com rapidez extraordinária para mulher tão enlutada. Em gratidão — ao marido ou ao pássaro, nunca saberemos — institui também o criadouro de aves Tertuliano Ariobaldo de Queiróz, finado juiz de Mamoré.
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